O Lendário ex-narrador inglês de F1 conta detalhes sobre sua convivência com Senna.
Ayrton Senna, a Lenda permanece viva.
A pior coisa que eu enfrentei na minha vida foi o mais divulgado acidente da história do automobilismo: a morte de Ayrton Senna, que aconteceu ao vivo, em milhões de lares espalhados pelo mundo inteiro. O GP de San Marino de 1994 já estava marcado por tristes acontecimentos desde a largada, quando um acidente fez com que uma roda atingisse o público, trazendo o Safety Car à pista, andando à frente de todos os pilotos em velocidade reduzida, enquanto o local do acidente era limpo. A corrida recomeçou na sétima volta, com o Williams de Senna pouco à frente do Benetton de Michael Schumacher. Mas quanto Ayrton chegou à curva Tamburello, de pé embaixo, ele perdeu o controle do carro. Mesmo que a velocidade tivesse diminuído levemente, ele chocou contra o muro de concreto a cerca de 220 km/h. Eu já tinha visto Michelle Alboreto, Nelson Piquet e Gerhard Berger passar pela mesma experiência no mesmo lugar e saírem ilesos, ou quase: o Berger ficou inconsciente em seu carro, que se incendiava.
Por isso mesmo, minha reação imediata no caso de Senna foi mais de espanto do que de preocupação. "Que pancada!", foi o que eu pensei na hora, mas imediatamente percebi que o estrago tinha sido bem maior.
Batida fatal na curva Tamburello.
A corrida foi interrompida e a equipe médica, liderada pelo prof. Sid Watkins, tentava salvar a vida de Senna. As câmeras da RAI, a rede italiana que gerava as imagens de TV, acompanhavam esse trabalho, e meu monitor mostrava cenas chocantes. Felizmente, pela primeira vez em um GP no exterior, a BBC tinha sua própria câmera e direção de TV. Assim, o produtor Mark Wilkin conseguiu mostrar algo diferente aos telespectadores britânicos. A transmissão continuava e eu via essas imagens, mas também podia acompanhar aquelas geradas pela RAI. O maior piloto do mundo estava prostrado e gravemente ferido ao lado da pista. Eu não tinha como saber da extensão dos seus ferimentos mas temia pelo pior. O que fazer? Obviamente eu não poderia fazer comentários do tipo: "Não se preocupem, parece ser sério mas já vi acidentes piores neste mesmo lugar onde os pilotos estavam bem...Os carros de hoje são muito seguros e tenho certeza que Senna vai ser sair bem desta". Também não podia dizer "É triste. Eu temo que pela expressão dos médicos em torno de Senna, que tenha sido um acidente fatal.", porque eu não sabia e poderia ser de um alarmismo inaceitável.
Aquelas cenas horríveis continuaram por um tempo que pareciam horas até que um helicóptero levou o brasileiro mortalmente ferido ao hospital, onde veio a falecer. Um verdadeiro grande homem encontrava seu criador e eu honestamente não sei como encontrei palavras para enfrentar a situação. Não gostaria de viver novamente isso.
A história de Senna foi dramática e terminou num final comovente. Eu precisaria de um livro inteiro para dissertar o enigma que foi Ayrton Senna, cujo nome verdadeiro era Ayrton Senna da Silva. Como Silva é um sobrenome muito comum no Brasil, ele preferiu usar apenas Ayrton Senna para se estabelecer como alguém mais destacado. E ele, de fato, conseguiu se tornar um dos maiores, alguém que milhões de pessoas em todo o mundo diriam ter sido o maior de todos. Três vezes campeão do mundo, 41 vitórias e 65 pole-positions - um piloto de extremo talento mas, acima de tudo, um ser profundamente temente a Deus, perfeccionista e obsessivo em ser o melhor em tudo o que fazia.
Senna não tinha receio em expor sua religiosidade.
Ele tinha de vencer. Era rude nas pistas, mas cordial fora delas, embora poucos tenham convivido com o homem que se escondia em sua figura pública. Eu fui até Brands Hatch no dia 29 de Setembro de 1981, especialmente para encontrar o brasileiro que venceu dois torneios de Fórmula Ford e 12 corridas em 17 largadas na sua primeira temporada. Ele me pareceu quieto, afável, muito maduro e obviamente algo especial. "Como eu posso conseguir um videotaipe da corrida de hoje para levar para o Brasil?", ele perguntou. Eu respondi que lhe enviaria se ele vencesse a corrida. Ele terminou em 2º e fez a melhor volta, mas mesmo assim eu lhe mandei o taipe. Em 1982, ele dominou a FFord 2000 e, no ano seguinte, teve uma temporada repleta de disputas com Martin Brundle na F3. Ele chegou ao título com 12 vitórias e eu contei isso ao mundo por meio dos microfones da BBC.
Formula 3 - Ayrton Senna x Martin Brundle
No final do ano, ele foi a Macau para a prova mais importante da categoria, um verdadeiro campeonato mundial. Eu estava lá para fazer o comentário para a TVB de Hong Kong e, imediatamente após sua vitória, liguei para o Bernie Ecclestone, então dono da Brabham, para lhe dar a noticia: na semana anterior Senna tinha testado um dos seus carros. Com um fuso horário de oito horas, Bernie estava provavelmente dormindo mas Ayrton conseguiu um lugar na F1 para 1984, com a Toleman, equipe que veio a se tornar Benetton.
Eu fui hipnotizado por sua emocionante apresentação em Monte Carlo, quando ele largou em 13o e estava prestes a ultrapassar Alain Prost, quando a corrida foi interrompida. No final da temporada, eu estava no Bruckl Wirt Hotel, em Niklasdorf, junto com as equipes Toleman e Ferrari. Durante um jantar, fui até a mesa do Mauro Forghieri, o projetista da Ferrari, para pedir que ele autografasse um livro. No caminho, encontrei Ayrton e o chefe da Toleman, Alex Hawkdrige, numa acalorada discussão: Senna estava quebrando o seu contrato com a equipe para assinar com a Lotus para 1985. Ele sabia que merecia um carro melhor e sua vontade de vencer o tinha levado a mudar de equipe. O anúncio foi feito e Hawkdrige impediu Senna de disputar o GP da Itália para lhe dar uma lição. Alex era uma dessas poucas pessoas capaz de fazer isso e um incrédulo Senna simplesmente não entendia o que estava acontecendo.
A Maestria: Senna e o seu primeiro pódio na F1, Mônaco 1984.
Em 1985, porém, ele estava numa equipe onde podia vencer e foi o que aconteceu em sua segunda corrida pela Lotus, em Portugal. Num replay do que ocorreu em Mônaco, ele fez uma apresentação inspirada e permaneceu na pista enquanto todo mundo saia dela, incluindo Alain Prost, o homem que Ayrton acreditava tê-lo derrotado de maneira desleal naquela prova. Senna tinha chegado com sabor de vingança. A minha primeira de muitas entrevistas com ele como vencedor de corrida em Portugal de maneira ainda pior do que aquela com Lauda e Prost no ano anterior. Sem qualquer controle sobre quem tinha acesso a ele, eu tive que abandonar meus modos e chegar até ele na base da cotovelada.
Acabei encontrando alguém que parecia acostumado a vencer GP's em toda sua vida: ele estava calmo, relaxado e bem articulado. Sim, ele parecia feliz por ter vencido seu primeiro GP; não, isso não tinha sido tão facil quanto parecia: ele também saiu da pista como todo mundo, mas conseguiu voltar a ela sem problemas. E Também estava contente por dar a vitória à equipe.
Murray Walker entrevistando Senna após sua primeira vitória.
Pódio do GP de Portugal 1985
A Felicidade da Equipe Lotus.
Para mim foi um daqueles dias tipo "eu estava lá", o primeiro de muitos. Ayrton venceu em Mônaco seis vezes em 10 largadas, batendo o recorde de Graham Hill, que tinha vencido cinco vezes. Eu digo orgulhoso que narrei todas as voltas dessas vitórias. Foi um tremendo feito de Senna num circuito onde, mais do que em qualquer outro, a habilidade e a coragem do piloto são primordiais. Ele teria vencido também em 1988, seu primeiro ano de McLaren caso não tivesse perdido a concentração quando liderava Alain Prost pela enorme diferença de 53 segundos. Ele foi contra o guard-rail na entrada do túnel e, totalmente frustrado, desapareceu no seu apartamento próximo dali.
Primeira Vitória de Ayrton em Mônaco, 1987.
Mister Senna - Recorde de Seis Vitórias permanece Absoluto!
Para me manter bem informado, eu sempre vou às várias coletivas de imprensa que acontecem durante o fim de semana de um GP. Muitas delas são chatas, com os pilotos recitando declarações politicamente corretas, ansiosos pelo fim. Essas coletivas devem ser tremendamente chatas e irritantes para eles, mas fazem parte integrante de suas vidas previamente recompensadas. Senna era diferente e algumas de suas apresentações eram eletrizantes, particularmente se ele sentia que tinha sido mal interpretado mesmo quando não se sabia disso. Seu domínio de inglês, sua eloquencia e clareza eram impressionantes e ele conseguia manter a atenção de uma sala repleta de jornalistas quando desembestava a falar. Diversas vezes eu me sentia surpreendido por suas declarações passionais sobre injustiças que ele acreditava terem sido cometidas contra ele - uma delas durou uma hora e meia.
Entrevista Ayrton Senna em Abril 1994 durante jogo Brasil x Paris Saint-Germain
Declaração de Ayrton Senna
Reportagem sobre o filme SENNA
Em 1990, eu tive de entrevista-lo na Austrália, para a BBC TV, sobre aquela colisão com Alain Prost em Suzuka, onde ele não apenas agiu errado como também colocou em risco as vidas de ambos. Eu não estava muito otimista, para ser franco, mas fui procedido por Jackie Stewart, que fazia a mesma coisa para o Canal 9, da Austrália. Na mais bela entrevista que eu já vi, usando todas a sua experiência em debates e comunicação e seu passado de três vezes campeão do mundo, Jackie calmo e pacientemente desmontou Senna a ponto do brasileiro perder a cabeça e começar a gritar para se justificar. A entrevista terminou de forma inamistosa e chegou a minha vez. "Eu acho que ele acredita honestamente no que está dizendo, mas o Hitler também era assim também", Jackie Stewart comentou mais tarde - e eu concordo com ele no fato que a auto-confiança de Senna nem sempre era justificável.
A famosa entrevista de Stewart com Senna
Mais tarde, vendo uma chance maior de vitórias, Senna deixou a McLaren em 1993, da mesma forma que fez com a Toleman uma década antes, para se juntar à Williams. O carro não era tão bom quanto ele esperava e tinha aparecido uma nova estrela em seu caminho, Michael Schumacher.
A primeira corrida do ano foi o GP do Brasil, em São Paulo, sua cidade natal. Sua assessora de imprensa, Betise Assumpção (hoje em dia sra. Patrick Head), me conseguiu uma entrevista no escritório no edificio sede de suas empresas. Demos uma volta pelo prédio, admiramos o visual de São Paulo pelo heliporto e então fomos encontrar o homem... Ao lado dele estava uma réplica do Lotus 97T de 1985, carro de sua primeira vitória na F1, seu pai Milton e o irmão Leonardo. Ayrton estava relaxado e contente.
"Eu sei que você é um cara dedicado ao que faz, Ayrton. É verdade que entre uma temporada e outra você fica analisando os vídeos das corridas para ver se aprende algo?"
"É verdade Murray, e sempre com sua narração."
Foi um dos maiores elogios que eu já recebi. "Bem obrigado, mas o que vem pela frente? Quando você vai parar e o que resta conquistar?".
"Aumentar esses números", ele disse. Tragicamente, isso acabou não acontecendo, Schumacher o derrotou no Brasil e novamente no Japão. Duas semanas depois disto estávamos em Imola para a primeira corrida da temporada européia, e na sexta-feira eu estava novamente com Ayrton para nosso bate-papo antes das corridas. Eu tinha revisto uns vídeos dele quando corria na F3 e notei que pronunciava de maneira incorreta seu nome. Decidi então pronunciar da maneira correta nas duas primeiras corridas, mas recebi críticas dos telespectadores. Voltei então com o que estava acostumado:
" A-er-ton, duas corridas já foram, nenhum ponto e Schumacher já está disparado..."
"O Que aconteceu com o A-yr-ton?", ele disse. Eu fiquei estupefato. "Como é que você sabe disso? Você está guiando quando falo estas coisas"
"Bem, eu dou um jeito." respondeu com um sorriso.
Essa foi a última vez que falei com ele. Dois dias depois ele morreu no Hospital Maggiore em consequência daquele acidente. Ayrton Senna foi uma das maiores personalidades que eu conheci, um gênio entre os raros da história do esporte.
Entrevista de Murray Walker com Schumacher e Senna em Imola 1994.
Quase 17 anos após sua morte, Senna ainda é reverenciado.
Mito Imortal
por Murray Walker
Autobiografia: "Murray Walker: Unless I'm very much mistaken"