O Campeão que eu vi crescer
Em plena comemoração dos 30 anos do primeiro título mundial, um pouco da história de como um mecânico se tornou o 1º brasileiro tricampeão mundial de F1.
Foi às 10h34 de um cinzento 18 de julho de 1978 que Nelson Piquet entrou no prédio da BS Racing Team. Um inglês baixinho, narigudo e luzidio chamado David Simms, chefe da equipe Bob Sparshott, cumprimentou-o com a diplomática frieza britânica indicando-lhe o caminho da fábrica-oficina num diálogo que só esquentou no momento em que chegamos ao centro do pavilhão. Suspenso sobre dois cavaletes de madeira estava o objeto de desejo de Piquet, um McLaren M23. Foi naquele protótipo, sem rodas, a meio metro do chão, modelo 1974, projetado quatro anos antes, que Piquet começava a carreira na Fórmula 1.
O carro da estréia na F1, o McLaren M23.
Vestiu o macacão, a ceroula incombustível, calçou as meias e as sapatilhas de piloto quase sem ruídos. Parecia envergonhado com os olhares do seu mecânico da F3, Gregory Siddle, e cada clique da máquina fotográfica com que eu documentava a cena histórica deixava-o ainda mais embaraçado. Era o nervosismo da pré-estréia. Afinal, procedia-se apenas ao acerto do banco, volante e distância dos instrumentos, naquele pavilhão de Luton, nos arredores de Londres. O teste de pista seria no dia seguinte, no circuito de Silverstone, 190 quilômetros dali.
Piquet, o campeão inglês e europeu de F3 daquele ano repetia, quase sem fôlego, o mesmo ritual do adolescente, que cinco anos antes, sentara pela primeira vez no Super Vê para a prova de estréia no autódromo de Goiânia, em 1974. Agia com curiosidade do garoto mecânico de Brasília, que metia as mãos na graxa para ganhar os trocados que investia no kart. O rato de boxes que, meses antes, trabalhara como servente da equipe Brabham, na inauguração do autódromo de Brasilia, numa corrida de F1 amistosa.
Foi lá que ele poliu as rodas e lustrou o carro de Carlos Reutemann nos treinos e na corrida. Um fato que o argentino fez questão de lembrar quando, inconformado, perdeu o título mundial para o brasileiro "graxeiro", no GP de Las Vegas, EUA, em 1981.
Com a mesma sinceridade que confirmara o episódio de Brasilia, Piquet lembra os outros expedientes que usou para ter intimidade com o mundo dos grandes prêmios.
Piquet e Reutemann, apesar da rivalide, mantinham amizade fora das pistas.
"Assim como fiquei amigo dos mecânicos da Brabham F1 e levei-os até pra zona em Brasilia, também tinha conhecidos os caras da F2. Em Interlagos empurrei o carro pifado do David Purley meio autódromo e servi de motorista dele. Eu queria ficar nos boxes e o jeito foi fazer lotação no meu Fusca, do hotel para o autódromo. Acabei ficando nos boxes o tempo todo e quando cheguei à Inglaterra já conhecia vários mecânicos", lembra.
A Estréia na Fórmula 1
Em 30 de Julho, duas semanas depois de fazes testes excelentes em Silverstone com o McLaren M23, Piquet estreou na F1, em Hockenheim, no GP da Alemanha, substituindo Clay Regazzoni, acidentado no GP dos EUA-Oeste.
Pilotou um Ensign, classificou-se em 21º num grid de 24 pilotos e não terminou a corrida porque o motor quebrou na volta 33 das 45 do grande prêmio.
Nelson Piquet jamais teve um empresário ou assessor de imprensa. Sua carreira e sua imagem tiveram suas características: malandragem, coragem e improviso.
Antes de assinar com a BS, Piquet consultou alguns pilotos que lhe aconselharam a falar com Bernie Ecclestone, dono da Brabham e mandachuva da Associação dos Construtores da F1. Na cara e na coragem bateu no escritório de Ecclestone, que, depois de surpreso "I'm sorry", perguntou-lhe:
"Eu te conheço?"
Piquet, sem jeito, disse o que queria. O chefão leu demoradamente o contrato e foi objetivo: "Se você assinar isso e for bom, tá fodido para o resto da carreira. O melhor é você oferecer 10 mil dólares por corrida, sem nenhum vínculo no final do ano."
Antes que Piquet dissesse que não tinha dinheiro, Ecclestone despediu-o com um definito "vire-se".
Bernie Ecclestone, desconfiado, deu a chance ao determinado piloto.
Disputou o restante da temporada européia com o McLaren da BS, o mesmo com que Emerson Fittipaldi fora bicampeão em 1974. Pagou os 10 mil dólares da primeira e da segunda corrida e o dinheiro acabou. Duro, mas pretensioso, ele abriu o jogo ao se apresentar para a terceira corrida. Como a BS precisava ficar na vitrine para ter outro piloto depois da saída de Piquet, resolveram que ele disputaria as demais provas sem pagar e, naturalmente, sem receber nada.
"Até o sanduíche era por minha conta", recorda.
No GP da Itália de 10 de Setembro de 1978, em Monza, Piquet curtia um bom sexto lugar no grid quando sentiu alguém tamborilar no seu capacete. Era simplesmente o todo-poderoso Bernie Ecclestone com uma pergunta objetiva: "Você quer correr para mim no ano que vem?"
"Quero", respondeu, sem titubear.
"Então me procure à noite no Tourist Hotel, no Parco de Monza", disse Ecclestone, rumando para a tribuna de honra.
À noite, outro diálogo curto, rápido e objetivo, iniciado por Ecclestone:
"Você lê inglês?"
"Não, mas não interessa o que você tem para me oferecer?", retrucou o piloto, ansioso.
"Um contrato por três anos, que depende da sua capacidade. Se você for bom guia o carro."
"Tá bom, eu assino."
"Você não quer saber quanto vai ganhar?"
"Você vai me pagar?", surpreendeu-se Piquet
"Vou. No primeiro ano eu pago 30% dos prêmios que você ganhar. No segundo e terceiro eu pago 50 mil dólares, mais dos 30% dos prêmios. Naturalmente se você acelerar."
"Só acelerar?", perguntou Piquet. E assinou um contrato que Ecclestone guardou na pasta e o piloto jamais leu nem teve cópia.
"Eu pensei 'dane-se', e fui à luta. Queria mesmo era entrar objetivamente na F1 e guiar um carro competitivo."
A chance veio rápido. Já no GP do Canadá, em 8 de outubro, Piquet guiou o Brabham, de onde só saiu bicampeão, sem 1985, para a Williams.
O Brabham BT48 de 1979.
Brabham BT46, a estréia na equipe de Ecclestone.
O que Piquet não sabia é que a chance de pilotar o McLaren da BS teve o dedo de um dos maiores mitos do automobilismo mundial. Foi Jack Brabham, campeão do Mundo em 1959, 1960 e 1966, quem indicou-o a Bob Sparshott, quando este ofereceu a oportunidade para seu filho Geoffrey durante uma corrida de F3 em Silverstone.
"Se eu fosse você", disse Jack Brabham, "eu convidaria aquele brasileiro", e apontou para Piquet na reta de Silverstone.
Claro que o "Old Jack" tinha olho para as coisas da pista, mas certamente não vislumbrava que ao indicar Piquet estava descobrindo um piloto que seria bicampeão do Mundo pela equipe que ele fundara 17 anos antes. Uma descoberta que, como o Old Jack, se consagrou na galeria dos grandes mestres da F1 como brilhante tricampeão.
Enfim, campeão do mundo
Fazer o perfil de Piquet é como montar um quebra-cabeça. Ás vezes ele tenta esconder seus sentimentos para não parecer vulnerável e, em outras oportunidades, se expõe, traído pela própria emoção. Lembro-me bem do seu semblante carregado, contendo-se para não explodir de alegria quando saiu do carro em Las Vegas, campeão do Mundo pela primeira vez. Só admitiu o estado de choque que experimentou bem depois.
Primeira vitória na F1 em 1980, nos EUA.
A emoção do 1º título em 1981 também nos EUA.
"Quando recebi a bandeirada e tive a certeza de que tudo estava acabado, só uma coisa me passou pela cabeça: agora ninguém me tira esse título. Não suportaria nem mais meia volta, as dores no meu pescoço eram terríveis. Cheguei à exaustão, tanto que acabei desmaiado", lembrou emocionando Piquet, quando falávamos sobre seu tempo de Brabham.
Vice em 1980, campeão em 1981, Nelson Piquet Souto Maior tornava-se famoso na pista e irreverente fora dela.
Campeão na Super Vê brasileira e na F3 Inglesa e européia, malandro e brincalhão com os amigos e pouco sociável com os chatos, ele sempre foi autêntico. Nunca negou que não admirava Carlos Reutemann e que sempre teve prazer em ultrapassa-lo nas corridas. Desentendeu-se com Alan Jones no GP da Bélgica em 1980 e passou a hostiliza-lo. Destestava badalação. Nunca puxou saco de jornalistas, sempre amou a privacidade, não é zeloso da imagem, mas é pouco rogado para expressar suas opiniões.
Discutia tudo com seus mecânicos, conhecia muito do ofício, mas nunca mistificou a perigosa profissão. Não se envergonhava de confessar que o medo lhe acompanhou na pista.
"Ninguém na F1 pode dizer que não sente medo. Isso é mentira. Igual ao medo só a vontade de vencer. Eu me cagava de medo em toda largada, principalmente se visse o Andrea de Cesaris ao meu lado. Até nos treinos eu tremia, sentia aquele friozinho na barriga. Não era medo de morrer. Se morresse, fim, acabou-se. Eu temia me quebrar todo", me disse depois de se envolver num triplo acidente, com Riccardo Patrese, Teo Fabi e Stefan Johansson, em Mônaco 1985.
Acidente entre Piquet e Patrese, Monaco 1985.
O medo da invalidez fez Piquet optar por carros seguros. Criticou aberta e corajosamente os protótipos de fábrica. "São verdadeiras cadeiras elétricas. Bateu, danou-se."
Classificou o chassi da Renault de lixo depois que Jean Pierre Jabouille quebrou as pernas no GP do Canadá, em 1980, e condenou a Ferrari, que matou Gilles Villeneuve em Zolder, nos treinos do GP da Belgica, em 1982. Para ele, seguro era o Brabham com o qual bateu forte no GP da Holanda, em 1980.
Outra opinião que Piquet sempre tornou pública eram suas preferências pelos circuitos. Seus favoritos eram Zeltweg na Áustria, Hockenheim na Alemanha e Monza na Itália. Todos com média acima dos 250 km/h. Detestava os traçados de baixa velocidade. O da Hungria - que chamava de kartódromo - e de Mônaco, pista sinuosa e lenta, ele enjoava de sair vomitando do cockpit.
A sinceridade também valeu-lhe inimizades. A torcida italiana ferrarista, que chegou a amá-lo e pedir para que fosse contratado, queria sua cabeça depois que ele declarou que a Ferrari só melhoraria após a aposentadoria do Comendador Enzo Ferrari, "que estava gagá".
"Você se arrependeu desse comentário?", pergunto
"Claro que não. Eu tinha razão. Eles estão há vinte anos sem ganhar o campeonato e eu que vou me arrepender do que disse? Não fui para a Ferrari porque eles não pagavam o que eu queria. Se tivesse ido tinha me dado mal ou , talvez arrumado aquela confusão."
Guerra na Trincheira
Viveu as turras com Nigel Mansell nos dois anos que foram companheiros na Williams.
"Você quer saber sobre fofocas da Williams? eu conto", me dizia Piquet durante a dura disputa com Mansell pelo título mundial. "Teve muita sacanagem. O Patrick Head, projetista e chefe de equipe, foi contra minha ida para a Williams. Ele queria provar que poderia ser campeão com seu protótipo e um piloto que ainda não tivesse título. Provar o que todo mundo já sabia: que o carro era o melhor da F1. Ele é um bom engenheiro, sabe copiar tudo o que surge no circo com muita competência. Muitas vezes faz melhor do que o original."
O Grande Rival - Nigel Mansell.
Nelson Piquet pilotou para a Williams em 1986 e 1987.
Foi por isso que Piquet resolveu trabalhar para si e não mais para o time. Treinava com o carro titular e preparava o reserva para a corrida. Não abria o jogo para os mecânicos não passarem os seus acertos para o carro do Mansell.
"Um pouco de malandragem os fazia baixar a bola", me garantiu, em novembro de 1988, fazendo uma revelação corajosa sobre a renúncia de Mansell em competir o GP do Japão de 1987, no qual Piquet ganhou o tri. "você sabia que o Mansell não sofreu nada no acidente do Japão?"
Segundo Piquet, seu companheiro de Williams, que bateu forte na sessão de classificação, se quisesse, poderita ter corrido. Garante que Mansell preferiu fazer drama e voltar para a Inglaterra porque sabia que seria muito dificil vencê-lo na briga pelo título e quis se passar por vítima.
"Quem me contou?", afirma Piquet "Foi o próprio médico da FIA, o Dr. Sid Watkins, que atendeu o Mansell. Ele disse que o inglês teve sua autorização para competir normalmente."
Sinceridade é uma virtude pouco vista na Formula 1 e muito comum em Nelson Piquet. Ele assume suas manhas mas revolta-se com a mentira. Não nega que carregou um recipiente cheio de água para chegar ao peso mínimo de 580 quilos no seu Brabham no GP do Brasil de 1982. Uma caixa preta que jogava água fora na primeira freada, deixando o carro 30 quilos mais leve. Ganhou a corrida, mas o truque foi descoberto e ele (juntamente com Keke Rosberg, segundo colocado, que também tinha a tal caixa preta na Williams) foi desclassificado, uma semana depois.
Jamais admite, porém, que depois de ter feito a pole no GP de Monaco de 1981 encheu propositalmente o tanque de óleo além do nível para derramá-lo na pista, impedindo os outros pilotos de tirar-lhe o primeiro lugar do grid.
"Isso eu jamais faria, porque estaria colocando em risco a vida dos outros pilotos. Na F1 há sempre alguém tentando levar a melhor sobre os outros, mas não existe sabotagem."
O truque da água, venceu mas não levou.
Claro que Piquet teve amigos na F1. Niki Lauda foi um. Gostava do Niki, um tricampeão mundial que sabia tudo e não esnobava ninguém. Mas era avesso aos franceses.
"Como posso ser amigo do Prost? Um tipo cheio de frescuras. Ou do babaca do Patrick Tambay? Com o René Arnoux não dava nem para conversar, era um panacão QI 12, eu acho. Já o Keke Rosberg era muito confuso. Imagine anunciar no meio da temporada que ia deixar de correr. Isso é coisa de cantor."
E o Gilles Villeneuve, ele marcou época?
"Olha, era rápido. Mas acho que o problema dele era o capacete. Penso que usava o número menor e isso espremia-lhe a cabeça. Era só colocar o capacete e saía fazendo merda. Foi longe na F1 porque estava na Ferrari. Se pilotasse num time que não fosse de fábrica tinha levado os caras à falência."
Piquet não deixava de se divertir com os jornalistas, principalmente os de televisão, quando insistiam que ele antecipasse seus planos. No GP da Italia de 1986, revelou a estratégia com exclusividade e ao vivo para a RAI (TV italiana) minutos antes da largada. "Quero que o Senna e o Mansell dêem uma porrada na primeira curva e o motor do Prost exploda na seguinte: tudo isso está nos meus planos, aí eu ganho mais facilmente."
Piquet e Marcelo Tas
Algumas frases polêmicas de Nelson Piquet
Nunca zelou pelo físico nem esmerou-se na elegância. Sempre se veste esportivamente, detestava gravatas e adora tudo o que tem motor. Também nunca escondeu os tempos das vacas magras que viveu durante o primeiro contrato com a Brabham. Como fazia a F3, nos primeiros oito meses de F1 dormiu no caminhão em que viajava de circuito em circuito na Europa. Mas isso pouco incomodou, porque ele também aprendeu rápido a fazer negócios na F1. No último contrato com a Benetton, fechado com o diretor da equipe Flávio Briatore, tido como muito esperto, Piquet ganhou três vezes mais do que programaram lhe pagar.
Piquet e seus anos de Benetton. 1990 e 1991.
"Ele (Briatore) não me conhecia e nós acertamos um contrato com uma quantia fixa e outra por pontos ganhos. Acho que eram 180 mil dólares por ponto. Fiz 42 pontos, ficamos em terceiro no Campeonato de Construtores e eu ganhei mais 8 milhões de dólares. Superei o lucro como tricampeão na Williams."
A Vitória do GP número 500
Nelson Piquet retirou-se aos 38 anos das pistas tricampeão, com 207 grandes prêmios disputados e 23 vitórias. Uma delas, bem ao seu estilo, com categoria e malandragem, foi na Austrália, em 1990, na badalada festa dos 500 grandes prêmios da história da Fórmula 1.
Como se estivesse ensaiado o final da festa, Piquet deixou o suspense para o último momento num lance histórico, na última volta, a menos de 1 quilômetro da linha de chegada e em cima de Nigel Mansell, que vinha batendo seguidamente o recorde da pista. O inglês estava se despedindo da Ferrari e queria fazê-lo com uma vitória marcante. Preparou o bote da ultrapassagem mas esbarrou na malandragem do brasileiro. Piquet, habilmente, ocupou o trilho da pista e cedeu a parte suja para Mansell. Uma manobra que impediu a tomada da curva ao adversário e fechou, licitamente, a porta da ultrapassagem com milimétrica precisão. Foi um drible que, além da vitória, valeu ao brasileiro a entrada na galeria da Federação Internacional de Automobilismo como o vencedor do 500º Grande Prêmio de Fórmula 1. Coisa de gênio.
A festa dos 500 GP's começou com esta histórica foto.
em pé da esquerda para direita: James Hunt, Jackie Stewart e Denny Hulme;
sentados da esquerda para direita: Nelson Piquet, J.M. Fangio, Ayrton Senna e Jack Brabham.
Piquet e seu Benetton B190 Ford no GP 500 da F1.
A Aproximação do "Leão" Mansell.
A vitória
Bibliografia:
Livro "Os Arquivos da Fórmula 1"
de Lemyr Martins
Ed. Panda Books