Uma bandeira, dois pilotos
Senna e Piquet, intrigas e respeito mútuo entre os campeões.
Jamais entendi por que o país se dividiu na idolatria entre Ayrton Senna e Nelson Piquet. Seria anormal a identificação com a espontaneidade - às vezes até azeda - de Piquet, ou a admiração pelo recato - até inexorável - de Senna com os fãs. Mas surgirem legiões anti-Senna ou anti-Piquet, sendo ambos tricampeões e brasileiros, é, no mínimo, algébrico.
Eu, que estive em minoria como fã dessa dupla fantástica, acho que, mesmo inconsciente, foram eles que animaram essa divisão com os dardos de suas pirraças particulares. E, ironicamente, quanto tivemos a maior força na Fórmula 1 nas pistas do mundo.
Os jovens pilotos da época, nota-se a irreverência de Piquet com Senna.
O primeiro desentendimento entre Senna e Piquet surgiu em 1983, quando Bernie Ecclestone, dono da Brabham e patrão de Piquet, quis conhecer melhor Ayrton Senna. Ele era a grande revelação da época e Ecclestone, como os demais donos de equipe, ficou de olho nele. Chamou Piquet e propôs: "Eu gostaria de avaliar melhor esse brasileiro e fazer um comparativo entre vocês. O que você quer para topar um teste justo, em absoluta igualdade de condições?".
Piquet garante que exigiu apenas a igualdade. Daria meia dúzia de voltas com pneus velhos e acertaria o carro. Então colocaria pneus novos e faria a tomada de tempo. Senna deveria ter as mesmas condições. "E se ele fizer o mesmo tempo ou menos?", provocou Ecclestone.
"Bom, se isso acontecer, eu te pago 100 mil dólares. Mas se for o contrário, você é que me paga os 100 mil", propôs Piquet.
Ecclestone riu, concordou com a cara de quem tem um ás na manga, e os dois pilotos brasileiros foram para o circuito Paul Ricard, na França, fazer o teste.
Senna durante os testes com a Brabham, o ínicio dos desentendimentos.
Piquet seguiu o roteiro combinado, mas teve uma surpresa ao entrar no carro: a mando de Ecclestone, a válvula de regulagem de potência do turbocompressor estava lacrada num ponto imutável. Era uma artimanha do patrão para que o teste fosse realmente justo. Afinal Piquet, além de malandro, conhecia bem o carro e o motor com o qual tinha sido campeão.
Na versão de Piquet tudo seguiu como o estabelecido: ele deu cinco voltas com pneus usados, trocou-os por novos, fez o tempo de 1min7s (no pequeno circuito de Paul Ricard) e entregou o Brabham. Ayrton Senna fez a mesma coisa com os pneus velhos, mas usou mais jogos de pneus novos e não conseguiu atingir a marca de Piquet.
Mesmo assim o teste foi considerado muito bom e o próprio Piquet admite que elogiou Senna para o patrão, que resolveu contrata-lo.
Mas, segundo Piquet, a Parmalat, multinacional italiana, patrocinadora da Brabham na época, não aceitou.
"Eles queriam um italiano (no caso Riccardo Patrese), e não outro brasileiro. Daí o Senna saiu dizendo que eu havia boicotado ele. Eu só ganhei 100 mil dólares", ironizava Piquet.
Piquet não perdia a chance de ironizar os feitos de Senna.
As relações azedaram mais quando Piquet saiu da Williams para a Lotus, em 1988, e disse que a primeira providência que tomaria antes de entrar que fora de Ayrton Senna seria desinfetá-lo bem.
Em janeiro, porém, Piquet resolveu ser diplomático e jogar água fria na briga, elogiando Senna: "Ele é um bom piloto, ainda não é campeão, mas seguramente será. Tem tanto talento quanto eu, e não é lógico essa história de ficar brigando, como se a torcida fosse obrigada a escolher entre um e outro. Acho que ele só está errado em já se achar o melhor. Isso é péssimo. É importante acreditar que alguém é melhor que você para continuar progredindo".
Em 1988, quando a guerra travada entre os dois parecia terminada, Senna, mesmo brincando, acendeu o estopim de uma explosão que nunca mais se apagou. Depois de assinar com a McLaren, Senna isolou-se do mundo e só reapareceu no dia 6 de março no circuito do Rio de Janeiro, onde várias equipes, inclusive a Lotus, testavam pneus e fez uma declaração publicada na íntegra no Jornal do Brasil: "Eu tinha que dar aos outros uma chance de aparecer um pouco. Afinal, não tem sentido um cara ser tricampeão e eu continuar sendo assunto. Já que ninguém gosta muito dele, o único jeito era eu sumir para que ele pudesse aparecer um pouco."
No ínicio de 1988, Senna fez uma declaração infeliz o que provocou resposta forte de Piquet.
A réplica, bem ao estilo Piquet, veio rápida e atingiu Senna em cheio: "Senna desapareceu esses meses não foi para deixar eu aparecer. Foi para não ter que explicar à imprensa brasileira por que não gosta de mulher".
Estava deflagrada a nova guerra. Senna - como já esperava Piquet - levou a declaração muito a sério. Nem os conselhos do diplomático diretor da McLaren, Creighton Brown, para que o comentário fosse aceito como brincadeira, acalmou o piloto. Senna esbravejou, chamou Piquet de débil mental, sugeriu que "um cara como esse deveria ser internado pelo resto da vida num hospício para evitar falar tantas bobagens.".
Piquet, certo de que tinha provocado um estrago, não mudou o tom. "Eu apenas disse que ele não gosta de mulher, e ele não gosta mesmo. Mantenho o que disse", reafirmou em 9 de março de 1988. No mesmo dia, os jornais publicaram na íntegra um telegrama de Ayrton Senna, que examinava a possibilidade - depois confirmada, por meio dos seus advogados, de processar o detrator.
A Guerra entre Senna e Piquet deflagrada em 1988 chegou as vias judiciais.
Quando a oficial de justiça entregou a intimação a Nelson Piquet, no autódromo, em 13 de março para comparecer num prazo de 48h à 22a Vara Criminal, do RJ, onde deveria confirmar ou negar as suas declarações, o bate-boca já era assunto mundial. Era pública a intenção dos advogados de Senna em enquadrá-lo no crime de difamaçao e injúria (previa uma pena de 1 ano e meio de detenção) no caso de confirmar a declaração de que "Senna não gostava de mulher".
O L'equipe, principal jornal francês de esportes, deu sob a manchete "Escândalo Rio", que Piquet e Senna ultrapassaram o nivel de disputa, alcançando o ódio. Para o jornal tratava-se de uma inevitável e dramática escalada estimulada por certos jornais brasileiros. Criticavam Piquet por ter levantado dúvidas sobre a vida sexual de Senna, como se faz num recreio em colégio primário.
O Le Sport - também francês - afirmava que Piquet pretendeu deixar claro que Senna era homossexual e pergunta: "Como um tricampeão do mundo (Piquet) pôde ter derrapado tão gravemente?". O jornal ainda criticou duramente Piquet por suas "costumeiras brincadeiras, cada vez mais de mau gosto".
Os outros brasileiros, presentes ao circuito carioca, eram requisitados mais para opinarem sobre a briga do que pela performance na pista. Thierry Boutsen, piloto belga da Benetton: "É um absurdo. Eu conheço bem o Ayrton há tempo e sei que isso não é verdade. Talvez esse boato tenha surgido porque ele é tímido."
Riccardo Patrese, italiano da Williams: "É lamentável que a coisa tenha chegado a esse ponto". Alain Prost, francês da McLaren: "sem comentários".
Alessandro Nannini, italiano da Benetton: "Ainda que Piquet não tenha razão, Senna não deve se preocupar. Metade da população mundial é gay". A discussão entre Senna e Piquet deixava a McLaren e Lotus à margem dos treinos, propiciando um condimentado prato à imprensa italiana.
A revista italiana Panorama, com uma tiragem semanal de 800 mil exemplares, dedicou várias páginas à irreverência do tricampeão Piquet que "pôs em dúvida a fama de don juan que ostentam os pilotos de Formula 1".
Sob o título "Fórmula homo, sexo e motores", a reportagem estampava várias fotos de Senna e Piquet em belas companhias femininas, mas alertava que o assunto é daqueles que não podiam passar desapercebidos e a revista resolveu investigar a "afirmação" de Piquet. Os três autores da reportagem interrogaram diversas pessoas. Entre elas uma bela modelo morena italiana, que, embora insistisse em ficar incógnita, jura que Piquet mentiu. Disse na época: "Vivemos juntos (Senna e eu) durante seis mses, e não tenho dúvidas sobre a masculinidade de Ayrton".
Ayrton Senna e Carol Alt, um affair rápido.
Para os íntimos de Ayrton, Xuxa foi a sua maior paixão.
Senna e Adriane Galisteu, sua última namorada.
Os repórteres da revista mergulharam fundo nos bastidores da F1 e publicaram que outras personalidades do circo foram mais longe, informando à revista que "Katherine Valentim, modelo belga e ex-funcionária da grife Boss, patrocinadora da McLaren, foi íntima frequentadora de Senna, antes de ser companheira de Piquet". E nas entrelinhas a suspeita: "Quem sabe o ciúme também entrou na pista?".
A verdade é que Ayrton Senna nem Nelson Piquet imaginaram que suas ofensas ecoassem tão longe. Se Senna jamais se livrou completamente da aleivosia, Piquet ficou com a pecha de fofoqueiro, principalmente na imprensa francesa que jamais o perdoou depois do episódio.
Sentindo que a quarela tomava rumos incontroláveis, os advogados de Piquet, tentaram minimizar o fato, com argumentos até cômicos. Primeiro Piquet não teria falado em tom de entrevista. Disseram que houve um erro de interpretação, conotando o "não gosta de mulher" como um mero pregão mal interpretado. "No meio da F1, sempre acontecem atropelos e as perguntas são lançadas sobre os profissionais ainda aturdidos e desgastados pelos problemas de pista e que, por isso mesmo, têm necessariamente o colorido da pressa."
E continuavam: "Quando fizemos que o sr. Fulano não bebe, não estamos garantindo que esse sr. Fulano, nas reuniões sociais que frequenta, ou talvez em sua casa, recuse o copo de vinho ou se furte a preparar a sua dose de uísque. Estamos apenas assegurando que o dito sr. Fulano não é um alcoólatra", argumentaram os advogados.
No dia 18 de março de 1988, Ayrton Senna, tentando dar fim ao rumoroso caso, distribuiu uma nota oficial aos jornais declarando-se satisfeito com as declarações prestadas por Nelson Piquet ao juiz de justiça na 22a Vara Criminal do Rio de Janeiro.
Judicialmente o caso foi encerrado, mas Senna e Piquet jamais voltariam a conversar. O mais que se aproximaram foi nas festivas dobradinhas brasileiras em três pódios. Curioso é que jamais tiveram qualquer problema em oito anos de pista nos mais de 32 mil quilometros dos 146 GP's que se enfrentaram. Ambos foram arrojados, determinados e sequiosos por vitórias, mas éticos esportistas e estupendos tricampeões. Talvez a culpa seja dos seus anjos da guarda, um tanto descuidados fora da pista.
Ayrton Senna e Nelson Piquet: 6 títulos mundiais, 64 vitórias e 89 pole-positions.
Texto extraído do livro
"Os Arquivos da Fórmula 1"
ed. Panda Books
LEMYR MARTINS